Escritor são-tomense defende valorização da diversidade da língua portuguesa – Téla Nón – !
PARCERIA – Téla Nón / Rádio ONU
Orlando Piedade, autor de três livros sobre o passado colonial do país, dedica sua obra ao objetivo de dar “alma e voz aos esquecidos”; em entrevista ao Podcast ONU News, ele ressaltou a importância do idioma como espaço de memória comum e pediu mais abertura para as diferentes expressões da língua na produção cultural.
Ao constatar que São Tomé e Príncipe era o país africano de língua portuguesa cuja história era menos divulgada, o são-tomense Orlando Piedade decidiu “brincar de escrever”.
Hoje um escritor consagrado e premiado, ele afirmou que sua jornada literária revelou o potencial da língua portuguesa para falar do passado, “dando alma e voz aos esquecidos”.
Uma língua de extremos
O autor de três livros sobre a era colonial e a escravidão no pequeno país insular foi entrevistado no Podcast ONU News como parte da série especial sobre o Dia Mundial da Língua Portuguesa, celebrado em 5 de maio.
“A língua portuguesa, para além de uma ferramenta, é o nosso território e o nosso espaço. É o nosso território com muito potencial. É o espaço onde a memória se cruza e de várias formas, em várias vertentes. Portanto, é uma língua em que nós podemos passar de extremos com a mesma força. Nós podemos ser dóceis, podemos ser meigos e ao mesmo tempo podemos ser rudes, assertivos e tudo com base na riqueza da língua portuguesa. Portanto, esta dualidade e esta diversidade é um instrumento que tem muita força. Agora, nós temos é que continuar a aceitar a diversidade”.
Piedade explicou que sua obra trata de realidades que se estendem para além de São Tomé e Príncipe e abrangem Guiné-Bissau, Moçambique, Cabo Verde, Angola e Portugal.
Pesquisa histórica como aliada da ficção
Ele contou que para cada um de seus livros realizou pesquisas rigorosas para poder então iniciar o processo criativo de imaginar personagens, modos de vida e interações sociais totalmente baseadas nos fatos históricos.
Um exemplo vem da sua primeira obra, “Amor Proibido”, que retrata a realidade da época, onde uma mulher mesmo rica, tinha seu patrimônio controlado pelo marido. A personagem principal, após se tornar viúva, recuperou a posse temporária de sua riqueza, mas teve que se transformar para evitar um novo casamento e escapar de ameaças e tentativas de sequestro.
Crítica social através da poesia
O autor também se aventurou na poesia, gênero que considera um desafio. Ao ser convidado para escrever em uma coletânea, ele decidiu usar sua voz para fazer uma crítica à forma como a sociedade são-tomense trata as mulheres, especialmente as mais velhas, que muitas vezes são excluídas e estigmatizadas como “feiticeiras”, chegando a ser espancadas e mortas.
“Portanto, eu vi naquilo, naquele momento de poesia, uma forma de dar voz a esta gente, uma forma de chamar a atenção da sociedade para o drama que é a vida das pessoas que deram as suas vidas pelas nossas vidas e que estão agora numa fase descendente do seu ciclo de vida e que deviam ser merecedoras de toda a nossa atenção e não propriamente de maus tratos, abandono, esquecimento, vexames, como atualmente acontece”.
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Abertura para a diversidade de expressões do português
Piedade defendeu que para explorar o grande potencial da língua portuguesa é necessária mais abertura para as diferentes expressões do idioma na produção cultural.
“Felizmente, eu cresci a ver as novelas brasileiras, a ouvir autores brasileiros, a ouvir e a cantar músicas brasileiras e o mesmo com músicas portuguesas, angolanas, moçambicanas e cabo verdianas. E eu cresci com esta versatilidade, com a capacidade de perceber os diferentes estágios, e as diferentes vidas da língua portuguesa, o que, infelizmente, não é verdade, se nós fizermos o movimento inverso, porque nós corremos muitas vezes o risco de não ser não ser percebido quando nós falamos. Por quê? Porque eu acho que ainda temos alguma resistência em aceitar a diversidade e ir atrás da diversidade”.
O autor são-tomense afirma que é preciso perceber a língua portuguesa nas suas diferentes vertentes enquanto “um organismo vivo” e garantir que haja reciprocidade no consumo de todas as variações.
Leia na íntegra a entrevista do escrito São-tomense Orlando Piedade, parte da série de conversas sobre o idioma até o Dia Mundial da Língua Portuguesa, neste 5 de maio.
ONU News: Eu gostaria de perguntar sobre algo que seus livros têm em comum. Todos eles são baseados numa pesquisa histórica bastante intensa que você costuma fazer, principalmente sobre a história de São Tomé e Príncipe, no período da colonização. Então gostaria que você contasse quais foram os fatos mais marcantes, que mais chamaram a sua atenção, ao longo de todas essas pesquisas que você fez para produzir os livros?
Orlando Piedade: Ótimo. Na verdade, se nós observarmos à primeira vista o meu trabalho, parece que eu estou circunscrito ao espaço de São Tomé e Príncipe. Mas olhando com um pouco mais de atenção, nós conseguimos abrir o leque. Conseguimos estender para a Guiné-Bissau, Moçambique, Verde, Angola. Porque foi a mesma prática que é verificada em todos esses espaços, mas que já lá vamos. A ideia de escrever sobre fatos históricos surgiu no meio de uma notícia quando eu ouvi que São Tomé e Príncipe era o país africano de expressão portuguesa cuja história era menos divulgada. E nesta altura posso eu dizer que andava a brincar de escrita. E eu pensei bem, ok, quando eu leio um livro eu gosto de trazer e receber algum valor acrescentado. Por que nós vamos estar a tratar de banalidades quando nós podemos orientar o nosso trabalho com base nos elementos que são mais enriquecedores? E foi neste momento que eu achei que deveria contribuir para a divulgação da história de São Tomé e Príncipe, e que transversalmente, conforme referi, vamos buscar a história daquilo que aconteceu em quase todos os países africanos de expressão portuguesa. Só que São Tomé tem uma pequena particularidade. No meu primeiro livro eu vou ao momento em que, reza a história, embora eu tenha algumas interrogações relativamente a isso, que as ilhas eram desabitadas, quando da chegada dos primeiros colonos portugueses, portanto João de Santarém e Pêro Escobar, no dia 21 de dezembro, em 1470, e dia 17 de janeiro de 1471, portanto, algumas semanas se passara, à ilha do Príncipe. Dizem que as ilhas estavam desabitadas. Não concordo, não sublinho na íntegra esta versão, mas pronto, enfim. E São Tomé e Príncipe foi transformado num ensaio, num laboratório, para criação daquela população, daquela miscigenação, da mistura que nós hoje vemos e sentimos. Naturalmente que quando se fala de Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, se calhar as coisas já não foram neste contexto, mas talvez tenha acontecido mais ou menos o mesmo nas ilhas de Cabo Verde, dada a insularidade pura. E nós partilhamos esta vertente, este detalhe. E a literatura, a língua portuguesa é um suporte, um elemento fundamental e o nosso espaço. É a nossa ferramenta e a nossa matéria prima, aceitando a diversidade e a própria vida que a língua tem dentro de todos esses espaços. E nós a utilizamos para divulgar, para falarmos do passado, para darmos alma e voz aos esquecidos.
ONU News: Dar voz aos esquecidos, sem dúvida, é uma missão na sua obra, que traz principalmente a situação dos escravos. Você poderia contar um pouco do seu processo criativo? Depois que você faz essa pesquisa e descobre esses dados, esses fatos, como é que você vai para um momento da criação literária mesmo, de criar um universo dentro daqueles fatos históricos?
Orlando Piedade: O processo criativo assenta essencialmente nos fatos históricos e pode parecer estranho, mas vou explicar. Eu defino com o horizonte, a temática, aquilo que eu pretendo e faço uma pesquisa devidamente balizada dentro deste intervalo. E começo a imaginar como é que foi a vida, como é que eram as pessoas, como é que elas interagiam, como é que as coisas aconteciam dentro deste contexto. E aí personagens começam a aparecer, os papéis começam a aparecer e a interessar, para que haja aquele rigor. Eu não posso estar a retratar o século XV, o século XVI e trazer uma qualquer personagem que esteja encaixada no século XX, seria um desfasamento inaceitável. E, portanto, é por aí que, em primeiro lugar, eu vou atrás dos factos históricos. Procuro perceber como é que estes elementos existiram, coexistiram, funcionaram e se entrelaçaram entre eles e daí crio todo aquele contexto da ficção. Eu vos dou um exemplo no meu primeiro livro, “O Amor Proibido”, que podia perfeitamente ter um título completamente diferente. Podia ser “A Viúva de Manto Negro”. Essa viúva de manto negro não é nada mais, nada menos do que um retrato da época, porque as mulheres naquela altura tinham um papel perfeitamente secundário e elas podiam até ser milionárias, ser ricas, com grandes posses, grandes patrimônios. O facto é que elas estão na posse do património de forma transitória e elas, enquanto são casadas, este patrimônio pertence ao marido. E esta viúva de manto negro, quando o marido morreu, ela ficou na posse do patrimônio de forma transitória, esperando pelo próximo casamento para que o marido fizesse a gestão, passasse a ser o dono e o proprietário de todo o patrimônio que era dela. A verdade é que aquela senhora se transformou após a morte do marido. Não aceitou a fila de pretendentes que ela tinha à porta para se casar com ela. Ela, inclusive, chegou a receber ameaças e tentativas de rapto para ser casada, para um casamento forçado de modo a pôr as mãos no patrimônio que era dela. E ela transformou-se. Ela transformou-se numa outra pessoa. Teve que jogar o jogo da época que, leia-se, ela também teve que passar a ser uma senhora dura. Uma senhora que jogava com as mesmas cartas que a sociedade, com que a sociedade se regia naquela altura. Portanto, nós estamos aqui a falar de personagem criada, devidamente enquadrada dentro do contexto da época, que era São Tomé e Príncipe. Os elementos, os fatores que se conjugaram para que a sociedade são-tomense fosse aquilo que foi, para que tomasse o rumo que tomou e que, não foi nada mais, nada menos, do que um veículo, um percurso que nos transportou até os dias de hoje, que é aquilo que eu bebo, que nós bebemos, que nós partilhamos enquanto um espaço da língua portuguesa.
ONU News: Além dos três romances que você escreveu, você também produziu alguns poemas que falam de temas mais atuais da sociedade são-tomense. Gostaria que você contasse um pouco também qual é a mensagem que você quis passar através desses poemas e por que você escolheu a linguagem poética, já que você vinha de uma trajetória mais focada em pesquisa histórica, em literatura? Esse mergulho na poesia, o que ele representou para você?
Orlando Piedade: O mergulho na poesia foi um. Foi um desafio. Foi um desafio. Alguém entrou em contacto comigo a pedir que eu participasse de uma coletânea de escritores são-tomenses com poesia e a minha resposta foi taxativa: Não, não escrevo poesia, não sei escrever poesia. E a pessoa disse: você simplesmente ainda não tentou, portanto, aceita o nosso desafio e apresenta-nos qualquer coisa e nós vamos avaliar se de facto achamos que não tem. E eu deixei à vontade dizendo que se acharem que não tem qualidade para integrar a coletânea, esqueçamos, deixamos para trás. E foi uma oportunidade. Foi o momento para juntar a minha voz a uma crítica que é minha, que é gritante e é um elemento que me preocupa na minha sociedade, na sociedade são-tomense, que é a forma como nós tratamos as mulheres e a forma como tratamos as mulheres mais velhas. E eu vi naquele contexto, naquele dia, naquele desafio, a oportunidade de dar voz a essas pessoas, de chamar a atenção, não tanto dar voz, mas sim chamar a atenção da sociedade e do mundo para a condição destas mulheres. Porque são mulheres que deram tudo delas por nós. Infelizmente, em São Tomé e Príncipe, a grande maioria das pessoas, dos miúdos, das crianças estão criadas apenas pelas mães. Portanto, são senhoras que viram-se ao avesso para cuidarem de nós, para nos dar vida, para nos moldar, para nos fazer homens. Portanto, é inaceitável que nós cheguemos à idade e cheguemos ao momento em que elas são mais velhas, mais débeis, mais frágeis que nós, abandonemos e acusamos de feitiçaria, de ser o mal da nossa sociedade. Muitas delas são espancadas e mortas. Portanto, eu vi naquilo, naquele momento de poesia, uma forma de dar voz a esta gente, uma forma de chamar a atenção da sociedade para o drama que é a vida das pessoas que deram as suas vidas pelas nossas vidas e que estão agora numa fase descendente do seu ciclo de vida e deviam ser merecedoras de toda a nossa atenção e não propriamente de maus tratos, abandono, esquecimento, vexames, como atualmente acontece.
ONU News: Tendo em vista o Dia Mundial da Língua Portuguesa de 2025, eu gostaria que você comentasse a respeito do seu prazer de usar essa língua como matéria-prima, seja para a produção de romances, seja para a produção de poemas, o que você pode compartilhar em relação à magia que essa língua traz para a produção escrita?
Orlando Piedade: A língua portuguesa, para além de uma ferramenta, é o nosso território e o nosso espaço. É o nosso território com muito potencial. É o espaço onde a memória se cruza e de várias formas, em várias vertentes. Portanto, é uma língua que nós podemos passar de extremos com a mesma força. Nós podemos ser dóceis, podemos ser meigos e ao mesmo tempo podemos ser rudes, assertivos e tudo com base na riqueza da língua portuguesa. Portanto, esta dualidade e esta diversidade é um instrumento que tem muita força. Agora, nós temos é que continuar a aceitar a diversidade. Eu, por exemplo, se tiver um diálogo com um brasileiro, como estamos neste momento, eu percebo absolutamente tudo o que diz. Há um risco, que já aconteceu comigo, de eu dizer certas coisas e já o inverso não é verdade. Vocês podem não perceber muitas coisas que eu digo. Por quê? Eu felizmente digo isso. Felizmente, eu cresci a ver as novelas brasileiras, a ouvir autores brasileiros, a ouvir e a cantar músicas brasileiras e o mesmo com músicas portuguesas, angolanas, moçambicanas e cabo verdianas. E eu cresci com esta versatilidade, com a capacidade de perceber os diferentes estágios, as diferentes vidas da língua portuguesa, o que, infelizmente, não é verdade, se nós fizermos o movimento inverso. Por que nós corremos muitas vezes o risco de não ser percebidos quando nós falamos? Porque eu acho que ainda temos alguma resistência em aceitar a diversidade e ir atrás da diversidade. Perceber a língua portuguesa nas suas diferentes vertentes enquanto um organismo vivo. E creio eu que esta é uma lacuna que nós temos que continuar a trabalhar. Da mesma forma como nós consumimos a variação da língua portuguesa no espaço brasileiro, ou no espaço português, ou no espaço moçambicano, ou no espaço angolano, deveria haver aquela reciprocidade para que nós percebamos que a língua portuguesa é um instrumento vivo, é o nosso espaço, é o nosso território e tem um potencial imenso. Mas nós temos que aceitar e trabalhar a diversidade para que nós continuemos a potenciar a sua grande capacidade.
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